Pierre Bergé: “Yves Saint Laurent se aposentou e morreu na hora certa”

MODA / POR SARAH LEE
Pierre Bergé: “Yves Saint Laurent se aposentou e morreu na hora certa”
Pierre Bergé fotografado pelo TheTalks.com ©Reprodução
A revista online The Talks publicou uma ótima entrevista com Pierre Bergé, em que o sócio e companheiro de longa data de Yves Saint Laurent (1936 – 2008) fala sobre a vida e o trabalho do estilista, que ele define como “artista” e como um dos designers de moda mais importantes do século 20 — “Chanel deu liberdade às mulheres; eu acho que Saint Laurent lhes deu poder”, ele afirma. A entrevista é extensa, mas vale a pena ler para ter um acesso muito particular a temas como a bem-sucedida dinâmica de trabalho Bergé-Laurent, a evolução da moda, e a genialidade e inquietude de Saint Laurent. Confira o texto traduzido na íntegra:
Sr. Bergé, é verdade que o senhor conheceu Yves Saint Laurent pela primeira vez no funeral de Christian Dior, em 1957?
Bem, você pode nos ver em uma foto que mostra os convidados de luto, mas na verdade eu o conheci no dia 3 de fevereiro de 1958, durante um jantar organizado por Marie-Louise Bousquet. Eu fui parabeniza-lo alguns dias depois que sua primeira coleção na Dior foi apresentada. Seis meses depois estávamos morando juntos.
E o que foi marcante para o senhor a respeito desse encontro?
Eu não sabia muito sobre moda na época. Eu era um amigo muito próximo de Christian e de alguns outros mestres da alta-costura como Balenciaga, mas para mim, moda não era arte. Aos meus olhos, era só algo para ganhar dinheiro. Mas na manhã desse primeiro desfile dele na Dior, entendi que uma coisa havia acontecido comigo. Percebi que eu era estúpido. Eu amei o que vi e simplesmente soube que Yves Saint Laurent seria um grande designer de moda.
Depois que Yves Saint Laurent foi demitido da Dior por causa do serviço militar na Argélia, o senhor fundou a grife homônima com ele e atuou como o CEO por mais de 40 anos, uma parceria muito longa e bem-sucedida.
Tínhamos um Muro de Berlim entre nós. Eu nunca interferi em seu design criativo por motivos comerciais, e ele nunca veio falar comigo sobre dinheiro. Nenhuma vez.
O dinheiro não era importante para Yves Saint Laurent?
Não. Porque ele confiava em mim e também, claro, porque ele sabia que tinha dinheiro. Mas ele nunca sabia quanto ele tinha. Nunca. Dinheiro para ele era uma coisa estranha.
Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual vocês acabaram tendo uma incrível coleção de arte. Vocês podiam simplesmente comprar qualquer coisa que gostavam sem pensar duas vezes?
Bem, não era tão fácil, não no comecinho. Quando começamos nosso negócio, não tínhamos dinheiro, mas mais tarde o dinheiro não era tão valioso a ponto de não o gastarmos em arte. Tínhamos muito orgulho da coleção que criamos.
O senhor a vendeu no maior leilão privado da história por € 373.500.000 (pouco mais de 853 milhões de reais). Por que o senhor a vendeu se ela era tão importante para vocês dois?
Quando decidi vender a coleção depois que Yves morreu, não foi só uma decisão nostálgica, mas também uma decisão monetária. Mas o dinheiro não era para mim. Como você deve saber, nós temos uma fundação [a Fondation Pierre Bergé – Yves Saint Laurent] que precisa de dinheiro e uma grande parte dessa venda foi para a fundação. Eu sou envolvido com muitas, muitas empreitadas, como a luta contra a AIDS, o apoio a teatros, e muitas outras coisas. Decidi vender a coleção principalmente por essa razão – para ter dinheiro para esses fins.
[O “leilão do século”, como o evento ficou conhecido, foi o ponto de partida para o documentário “L’Amour Fou” (2011), que durante o processo de produção acabou mudando o seu foco para um retrato intimista da relação entre Yves Saint Laurent e Pierre Bergé. Assista ao trailer]:
O senhor estava com ele no momento em que ele morreu?
Claro. Eu tinha decidido ir a Montreal por um fim de semana para visitar uma exibição quando recebi uma ligação do médico. Ele disse que era uma questão de talvez uma ou duas semanas. Antes e depois isso, fiquei sentado ao lado dele.
Ele tinha câncer no cérebro. Yves Saint Laurent sabia que a morte dele estava se aproximando?
De maneira alguma. Ele nunca soube. O médico me disse que não havia mais nada a ser feito e nós mutuamente decidimos que seria melhor para ele que ele não soubesse. Sabe, eu tenho a crença de que Yves não teria sido forte o suficiente para aceitar isso.
Como o senhor se sentiu quando ele não estava mais lá?
É tão difícil e quase impossível de descrever. Mas você também pode ter sentido isso em sua vida: é muito diferente se uma pessoa falece de repente, em um acidente ou AVC, ou após uma longa doença. Eu estava meio que esperando e isso me ajudou a estar preparado para essa grande perda.
O senhor se sente triste por não trabalhar mais com moda? Sente falta do aspecto do negócio desde que se aposentou com Yves Saint Laurent?
Não. Provavelmente porque a indústria da moda não é exatamente a mesma do passado. Eu não sou nostálgico – eu odeio nostalgia – mas estou feliz por não trabalhar nos negócios da moda hoje. Sinto muito te dizer isso, mas não é muito fácil trabalhar com revistas de moda agora.
Por quê?
Com Yves Saint Laurent, nós nunca falávamos de dinheiro, nunca relacionamos capas com publicidade, nunca conversávamos sobre isso. Nunca. Deixe-me dizer uma coisa: nós abrimos a Couture House em 1962, e em 1963 já estávamos em capas, com páginas internas inteiras. Você acha que isso é possível hoje? Mesmo com um novo Saint Laurent?
Será que Yves Saint Laurent odiaria a indústria da moda de hoje?
Claro! Yves se aposentou na hora certa e ele morreu na hora certa. Sinto muito te dizer isso, mas para mim é muito difícil entender o que aconteceu com os negócios da moda. É tudo uma questão de dinheiro e marketing. Nós nunca conversamos sobre talento – não é esse o ponto. Só falamos de vendas. Yves Saint Laurent teria odiado isso.
Qual o senhor diria que foi a maior conquista dele na moda? Especialmente nos anos 1960, Yves Saint Laurent e toda a empresa em torno dele realmente apontaram para uma nova direção.
Saint Laurent é, juntamente com Chanel, o designer de moda mais importante do século 20. Era uma época diferente de designers, uma época de grandes intelectuais. Eu já vi vestidos maravilhosos do Balenciaga e Christian Dior – mas a diferença entre aqueles designers de moda e Chanel e Saint Laurent é que eles permaneceram no campo estético. Saint Laurent e Chanel foram para o campo social – eles mudaram a vida de mulheres ao redor do mundo.
Por causa do que exatamente?
Chanel deu liberdade às mulheres; eu acho que Saint Laurent lhes deu poder. Podemos ver isso hoje, todos os dias.
Yves Saint Laurent e Pierre Bergé em dois momentos de sua longa parceria ©Reprodução
Todos o consideravam um gênio e ele se tornou cada vez mais intenso em sua maneira de trabalhar e viver. Por que o senhor acha que ele se viciou em drogas e álcool em meados dos anos 1970?
É muito difícil responder o que levou a esse vício. Mas tenho que admitir que Yves criou coleções maravilhosas usando drogas e álcool. Isso dificultou muito que ele parasse.
Ele estava sempre criando?
Sempre. Ele não prestava muita atenção em nada mais – ou ninguém mais. Marcel Proust explicou isso muito bem: ele disse que se você é um gênio, você está ocupado consigo mesmo – e é verdade. Voilà.
Yves Saint Laurent era frequentemente descrito como uma pessoa deprimida, e até em seu discurso de aposentadoria ele disse: “Eu passei por muitas angústias, muitos infernos; conheci o medo e uma solidão tremenda; os amigos enganadores que são os tranquilizantes e narcóticos; a prisão que pode ser a depressão e as clínicas de saúde mental”. Mas Yves Saint Laurent não foi uma pessoa que conquistou tudo? O que poderia faze-lo tão triste?
Acho que ele nasceu com depressão. E mais tarde ele sofreu com a fama porque percebeu que ela não lhe trouxe nada.
O senhor chamaria Yves Saint Laurent — aquele gênio admirado por tantos milhões — de uma pessoa trágica, no fim das contas?
Saint Laurent era um artista. E um artista sempre joga com sua realidade interna. Você tem que conhecer as regras do jogo — e eu conseguia lidar com isso muito bem. Tivemos muitos momentos felizes.
Quando ele era mais feliz?
Ele podia ser hilário entre amigos. Mas acho que ele ficava em seu estado mais feliz quando terminava uma coleção e recebia os aplausos e as ovações em pé. Depois disso a missão dele estava terminada. Era como um fogo de artifício — e então começava tudo de novo.

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