“Sou o notário que por causa do notariado se tornou jurista”

Publicado em 26/03/2015

Zeno Veloso, um dos mais influentes juristas do País na atualidade, fala sobre a emoção de nomear o Prêmio Nacional do notariado e destaca a contribuição do notariado para o avanço do Direito de Família no País.

Em recente estudo divulgado pelo informativo Migalhas, o jurista Zeno Augusto Bastos Veloso, Tabelião do 1º Ofício de Notas de Belém, no Estado do Pará, foi apontado como um dos doutrinadores mais citados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionados ao Direito Constitucional, especificamente sobre controle concentrado de constitucionalidade.

Detentor de um vasto currículo jurídico – é professor de Direito Civil e de Direito Constitucional Aplicado na Universidade da Amazônia e na Universidade Federal do Pará. Notório Saber (equivalente a doutor)  reconhecido pela Universidade Federal do Pará e Doutor Honoris Causa da Universidade da Amazônia –legislativo – foi deputado por várias legislaturas, participou como assessor da 2ª vice-presidência dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, foi o relator-geral da Constituinte do Pará e, pelo Ministério da Justiça, da Comissão de Juristas designada para redigir a Consolidação de Leis da Famílias e de Sucessões, bem como integrou a comissão de juristas que voluntariamente assessorou o relator do Código Civil de 2002, deputado Ricardo Fiuza na última fase de tramitação do mesmo  na Câmara dos Deputados – e executivo – foi Secretário de Justiça do Estado do Pará e Secretário de assuntos jurídicos do Município de Belém – é no notariado que encontra seu berço, sua fonte de inspiração. “A atividade cartorial me abriu tanto espaço no Direito Civil, de Família, das Obrigações, dos Contratos, do Direito das Coisas, que me deu uma base intelectual e científica para trabalhar melhor na atividade doutrinária”.

Tabelião Substituto desde 1966, antes mesmo de se formar em Direito no ano de 1969, assumiu a serventia no mesmo ano em razão do afastamento por tempo indeterminado da titular, que, para acompanhar o marido transferiu-se para o Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal e, em razão dos 450 anos de instituição do notariado no País, teve seu nome designado para intitular o Prêmio Nacional de Monografia em Direito Notarial, que levará os vencedores para o XIX Congresso Internacional do Notariado, em Paris, na França, em 2016.

CNB-CF – Como recebeu a homenagem de que seu nome será dado ao Prêmio Nacional de Monografia sobre Direito Notarial?

Zeno Veloso – Fiquei lisonjeado e emocionado. Quando o presidente do Colégio Notarial, Ubiratan Guimarães, de quem eu sou admirador, ligou para falar sobre a decisão que tinham tomado fiquei surpreso, pois foi algo muito inesperado. Ao longo de minha carreira participei de vários projetos importantes relacionados à Constituinte, ao Código Civil, a atividades acadêmicas e doutrinárias, além de muitos importantes eventos, tanto relacionados à atividade de notários e registradores, como a outros ramos do Direito. Embora em todos tenha sempre recebido muito carinho, atenção e reconhecimento, inclusive nas palestras que tenho dado em todo o País, nunca imaginei que a minha classe profissional faria uma homenagem deste quilate para mim. Foi uma notícia que me deixou profundamente emocionado e por que não dizer, envaidecido. Espero que o Prêmio e o evento notarial dos 450 anos no Brasil seja um sucesso como um todo. Estaremos todos lá no Rio de Janeiro para que isso ocorra, se Deus quiser.

CNB-CF – O senhor é reconhecidamente um dos maiores doutrinadores em Direito Constitucional no Brasil. Como se deu esta migração, do tabelião prático para o jurista nacionalmente reconhecido?

Zeno Veloso – Eu acho que o verdadeiro notário, o que sabe o que é ser notário tem que estudar. E estudar muito. Estava em Portugal e vou aproveitar sua pergunta para usar uma frase que usei lá, com vários professores. Muitos ensinam Direito dos testamentos com base na doutrina, em livros que leram, nas decisões judiciais, etc… Eu tento ensinar Direito dos testamentos com base, nisso tudo, em mais de 1 mil que já fiz, e tive de estudar para fazer cada um deles. Explico que não necessariamente redigi os mil testamentos, o que seria uma loucura, mas presidi, orientei na elaboração destes testamentos, com os mais diversos problemas, com as mais intricadas questões e a cada uma delas eu tive que dar uma certa atenção, ajudando a resolver os problemas. A mesma coisa com a compra e venda. Eu não sou um repetidor de minutas que me jogam à vistas. Eu realmente sempre procurei elaborá-las. Afinal, cada caso é um caso com sua história. Estudei profundamente a atividade notarial, então não sou o jurista que aproveitou ser jurista para ser notário, mas sou o notário que por causa do notariado me tornei jurista, se é que acham que é isso que eu sou. Eu sou o tabelião que estudou para ser jurista por causa do Tabelionato. Lógico que tive voos como professor que não dependeram do cartório. Tenho um livro bastante lido e conhecido chamado “Controle jurisdicional de constitucionalidade”, de Direito Público, como o próprio nome diz, e que não dependeu da atividade notarial, mas com certeza a atividade cartorial me abriu tanto espaço no Direito Civil, de Família, das Obrigações, dos Contratos, do Direito das Coisas, que me deu uma base intelectual e científica para trabalhar melhor na atividade doutrinária. O notariado sempre serviu de base para as minhas publicações.

CNB-CF – Como definiria a profissão de Tabelião de Notas?

Zeno Veloso – Ser Tabelião de Notas é fazer parte de uma das profissões mais antigas do mundo, de muita história e tradição, com fortes vínculos de responsabilidade, conhecimento e prudência. Acredito que o Tabelião de Notas é o guardião moral, legal e prático da vontade das partes e sua profissão deve ser exercida com intenso senso de respeito e humildade por seus delegatários, tamanha é a multiplicidade de impactos que provoca na vida da comunidade em que está inserido. O Tabelião também é um conselheiro, uma espécie de magistrado.

CNB-CF – Qual a contribuição que o notariado pode dar à sociedade por meio da desjudicialização de conflitos?

Zeno Veloso – Acho este ponto vital para o futuro do notariado brasileiro e já tivemos um exemplo muito feliz neste processo, com os resultados advindos da Lei 11.441/07, que permitiu a realização de separações, divórcios, inventários e partilhas em âmbito notarial. Temos que provocar a alteração da mentalidade do brasileiro e dos operadores do Direito de que tudo precisa ser judicializado. Não precisa! Temos que deixar para a Justiça o que provoca discórdia, o que não há consenso, o que precisa ser julgado. Para o notário devem vir os atos consensuais e até aqueles onde, mesmo que não haja um consenso inicial, este possa ser obtido por meio da imparcialidade exercida pelo notário. É aqui que vejo o grande papel que o notariado pode exercer nos serviços de mediação e conciliação. A população anseia por esta agilidade que só não ocorre por formalismos inexplicáveis. Tive um caso de inventário que demorou um ano apenas para que um testamento sobtivesse o “cumpra-se” do juiz, após o Ministério Público se manifestar. “Cumpra-se” que pode vir a ser questionado posteriormente, caso haja alguma alegação no sentido da invalidade do testamento. A sociedade não aceita mais este tipo de demora. E este que eu dei é apenas um exemplo.

CNB-CF – E quais novos atos poderiam contribuir para a desjudicialização desses processos por meio do notariado?

Zeno Veloso – Há muitas opções e o Conselho Federal tem realizado intercâmbios com notariados de outros países para buscar estas inspirações. Em Portugal já é permitido ao notário realizar inventários judiciais, atuando em parte com algumas funções jurisdicionais e o resultado tem sido excelente. No Brasil, a Lei 11.441/07 desafogou quase em 100% os processos destes atos nos Judiciários estaduais. Não vejo razão para que não seja feito um inventário mesmo existindo testamento se as cláusulas já foram cumpridas e se os interessados estão de acordo. A mesma coisa para os casos de divórcios envolvendo menores onde os pais estão em acordo em relação a itens como pensão, visitas e guarda. Mas só nestes casos. Quando há alguma divergência e o juiz precisa se manifestar com o apoio do Ministério Público acho que o procedimento deve ser judicializado mesmo. Daí não vejo vantagem em trazer atos litigiosos para o notariado. Há um formalismo exagerado na Legislação Brasileira em diversas questões que acabam tornando o processo algo inatingível para largar parcelas da sociedade, especialmente os carentes, os pobres. Tomara que o novo CPC consiga resolver algumas dessas questões angustiantes.

CNB-CF – Vislumbra outros tipos de atos que possam ser exercidos nos demais ramos do Direito?

Zeno Veloso – Vejo que o notário, que já teve grande participação no passado e no presente do Direito de Família, terá a oportunidade de ter enorme participação no que se avizinha e exercerá, creio eu, o mesmo papel que exerceu na questão das uniões estáveis e das uniões estáveis homoafetivas. Nosso legislador, como sempre omisso e lento, como já havia sido na questão da permissão do divórcio e do reconhecimento de filhos tidos fora do casamento, se absteve de regulamentar estas questões. O mesmo ocorreu em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas a demanda da sociedade não espera. Tabeliães de Notas iniciaram o movimento e eu aqui fiz várias escrituras de confissão de união estável, ou uniões, com as pessoas afirmando que viviam como um casal, sem no entanto contrair matrimônio. Agora temos as questões envolvendo famílias recompostas, multiparentalidade, filiação socioafetiva e diversas outras questões que vão acabar desaguando na atividade notarial, que é aquela que está mais próxima da sociedade. Recentemente, um advogado me procurou querendo que eu redigisse para ele uma escritura pública de reconhecimento de uma mocinha que ele criava desde que nasceu, como sua filha socioafetiva. Se não houver ilegalidade, imoralidade ou contrariedade aos costumes cabe ao notário transformar em instrumento a vontade das partes. Os efeitos? Aí, caberá ao Judiciário, na ausência de lei específica, julgar e avaliar o avanço que a sociedade deve ter. Deve-se destacar, também, o grande papel na evolução do Direito do Advogado e do Juiz. Outro ponto vital que deveria ser explorado é a questão da ata notarial, que na minha concepção é muito pouco conhecida, explorada e divulgada pelo notariado para a sociedade e para os demais profissionais do meio jurídico. Muitos acham que a carta de Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento do Brasil foi o primeiro documento notarial que tivemos. Chamava-se carta, lógico, mas hoje seria uma ata notarial. É um instrumento especial para o notariado brasileiro. É o começo da nossa longa trajetória.

CNB-CF – O senhor citou bastante o Poder Legislativo. Como foi sua experiência no Legislativo ao atuar na Assembleia Nacional Constituinte de 1988?

Zeno Veloso – Realmente, participei desse importante momento de fortalecimento da democracia no País após anos de bastante dificuldade pelos quais passamos. No entanto, meu papel esteve restrito a assessorar a 2ª vice-presidência da Assembleia Nacional Constituinte, encarregado de elaborar pareceres sobre diversos temas constitucionais para a bancada do Estado do Pará, indicado pelo deputado Jorge Wilson Arbage. Lembro, no entanto, que a atividade notarial estava representada na época por uma pessoa muito atuante que, se não era o líder, certamente era uma das figuras mais presentes em Brasília naquela época, tanto que muitas vezes era cumprimentado como se um deputado fosse. Trata-se do carioca Antônio Carlos Leite Penteado, com quem tive muito contato na ocasião, inclusive auxiliando no que me era solicitado, como reunião com deputados representantes do Pará e eventuais textos ou apoios jurídicos. Mas coube a ele e à equipe que estava com ele todo o trabalho estratégico de avançar no tema cartorário. Esta foi minha singela participação em apoio ao notariado durante a Constituinte, afinal já era notário e não poderia me furtar a ajudar. A norma fundamental do notariado brasileiro, o art. 236 da Carta Magna deve muito ao esforço dos que atuaram abnegadamente nos extensos corredores da Assembleia Nacional Constituinte.

CNB-CF – Como o senhor iniciou sua atividade em cartório?

Zeno Veloso – Fui primeiro convidado pela antiga titular desta serventia (1º Ofício de Notas de Belém (PA) para ser escrevente do cartório. Na época, me refiro à década de 60, haviam poucas faculdades de Direito no País, imagine então em Belém. Fato é que comecei a me destacar na faculdade, com boas notas, alguns trabalhos bem avaliados sobre contratos e daí surgiu o interesse da Tabeliã em me convidar para atuar aqui. Em 1966 já era Tabelião Substituto em exercício, uma vez que a titular havia pedido licença por prazo indeterminado e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou até falecer em 2002. Desde 1966, respondo, então, pelo 1º Ofício de Notas de Belém do Pará e fico muito honrado em dizer que nenhum ato aqui praticado durante todas essas décadas – reconhecimentos, autenticações, procurações, escrituras públicas –  foi contestado judicialmente.

CNB-CF – Como avalia o atual estágio da atividade notarial no Brasil?

Zeno Veloso – Eu acho que o modelo de notariado praticado no Brasil é o ideal, a forma jurídica pela qual está estruturada, é a mais correta. No entanto vejo um grande problema que o notariado brasileiro deve enfrentar. Digo o notariado, mas me refiro também aos registradores, principalmente os registros imobiliários. Acho que a própria classe precisa repensar e propor uma ampla reformulação da capilarização do notariado brasileiro. Há algumas localidades pequenas onde há muitos notários e cria-se uma concorrência predatória e há grandes localidades onde há poucos notários e registradores, e onde vemos nascer não só o problema de invasão de territórios, mas também o de receitas que muitas vezes estão muito além do que a sociedade aceita. Sei que é um tema espinhoso e concordo que é, mas é esta questão que faz com que haja muitos questionamentos sobre a atividade, tanto por parte de outras classes jurídicas, como pelos órgãos fiscalizadores e pela sociedade. É um problema de fácil solução externa, com a edição de uma lei e um regramento sério, baseado em população, renda e atividade comercial realizada, mas de difícil solução interna, em razão de que as pessoas que assumiram grandes serventias fizeram por merecer ao serem aprovadas em concurso público para estas delegações e por trabalharem honestamente em seus ofícios. Mas poderia ser uma mudança que não atingisse o atual direito adquirido e sim se tornasse regra para futuras delegações. Quando falamos em novas atribuições na área empresarial, por exemplo, celebração de contratos e tudo mais, muitos desses atos escapam ao notariado em razão da multiplicidade de atos e cobranças – notariais e registrais – que são feitas em um determinado empreendimento. Acredito que isso precisaria ser um pouco equalizado pela própria atividade, uma auto iniciativa de aperfeiçoamento, ao invés de acabar vindo a ser forçada pela sociedade.

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